quarta-feira, 31 de março de 2004

Refúgios

Ontem eu fui dar aula de violão em Laranjeiras. Adoro aquele bairro. Gosto do meu aluno porque ele me mantém estudando e porque ele me faz andar por lá. Saltei do metrô na estação Largo do Machado. Era cedo demais para ir direto para a casa dele e eu não sabia o que fazer. Lembrei do Parque Guinle e me sentei por lá. Fui ver as crianças brincando e ler meu livro.

Tinha duas francesas por lá, que moravam ali atrás. Como todas as francesas do mundo, cada uma era carregada por um cachorro. O cachorro mais novo conseguiu escapar e começou a correr por todo o parque, latindo. Uma criança que se solta, mesmo. Não tardou para toda a criançada correr atrás dele e brincar. Correram até cansar (o bicho). Depois foram jogar pedra no laguinho.

Hoje, fui mais cedo para a terapia, em Copacabana. Sentei num banco no calçadão. Peguei meu livro e li, sentado ali. Fiquei olhando o mar e folheando as páginas. O sol se pôs apoteoticamente, como no outono. As crianças jogavam futebol na areia e um enorme cargueiro passava ao longe. Parecia não mover as águas.

O Rio tem esses refúgios. São lugares para onde se pode fugir no meio da correria do dia. Eles ficam a 20 metros do asfalto, a 20 metros do monóxido de carbono, a 20 metros de uma excelente livraria. São refúgios fantásticos, onde você pode se esconder à plena visão.

Estou lendo um livro sobre Joe Gould, um boêmio da NY dos anos 30 a 40. Muito interessante. Esse livro foi escrito por um jornalista. Na verdade, não deveria ser um livro, apenas dois artigos publicados na revista (ou jornal, não lembro ao certo) The New Yorker. O livro virou filme: O Segredo de Joe Gould, nome do segundo artigo. O primeiro artigo é Professor Gaivota. Péssima tradução, mas não vejo alternativa. Faz referência/rima ao nome do próprio personagem-título (gaivota em inglês é seagull) e serve de prenúncio a algo que se explica no texto: o homem era a maior autoridade no mundo sobre o idioma das gaivotas.

O livro é bom: leve, narrativa jornalística. Passa fácil, feito limonada em dia quente. A história é verídica e o jornalista, como narra no segundo artigo, acabou ficando amigo do tal Joe Gould. Tanto assim que começou a receber a correspondência dele no próprio escritório. Ele conta que, logo depois de publicado o primeiro artigo, choveram cartas endereçadas a Joe Gould na redação. A descrição de uma delas me chamou a atenção. "Estava escrita a lápis, em papel pautado..."

Há quanto tempo eu escrevi minha última carta a alguém a mão? Não me lembro. Muita coisa se diz só com o papel, o meio de escrita e a caligrafia. Eu não tenho mais caligrafia. Eu escrevo em arial, times new roman, verdana... Minha letra não existe mais. Ninguém mais recebe cartas minhas em folha arrancada do caderno, ou em papéis pergaminho, comprados a peso de ouro em papelaria. Todo mundo recebe meus e-mails.

E-mail não tem borrão de tinta, nem mancha de impressão digital. Não tem rabisco que a caneta fez, sem querer. Não deixa identificar o grau de intimidade dos correspondentes. E-mail é prático, rápido e eficiente. Precisa mais?

Eu ainda tenho as cartas que a Carol me escrevia de Londres, dez anos atrás. Tenho cartas que trocava com uma outra menina em Surrey, Sandra Waas. Os papéis eram diferentes. Carol era (ainda é) amiga próxima. A letra era meio corrida, dava para ver a pressa, por que tinha que escrever para outras pessoas. O papel era o que tivesse: caderno, ofício, tem uma que é batida no computador, outra com aquele círculo de lágrima.

A Sandra era mais distante. Uma pen friend, daqueles que existiam quando existiam cartas. As dela eram em papel com marca d'água. Delicadas e com letras cuidadosas. Sempre em tinta preta (tenho cartas com diversos tipos de tinta e a lápis, da Carol). Os papéis tinham texturas diferentes.

A carta já dizia quem era o remetente. Pelo remetente, era possível adivinhar o destinatário. Pelo menos, era possível saber o lugar do destinatário na cabeça e coração do remetente. Isso não se vê mais, entre as arrobas e os pontocom. Esse mundo mudou, está mais prático e eficiente. Odeio quem fez meu mundo prático e eficiente!